A 24 de fevereiro de 2022, dias depois de o Kremlin ter reconhecido como independentes as autoproclamadas repúblicas de Lugansk e de Donetsk, na região ucraniana do Donbass, as tropas russas invadiram o leste da Ucrânia. Nessa manhã de inverno, as sirenes começaram a soar em toda a Ucrânia, à medida que várias cidades e populações começavam a ser alvo de bombardeamentos e ataques aéreos russos.
O que começou como uma tentativa do Kremlin de, unilateralmente, conceder soberania aos Estados separatistas, rapidamente se transformou numa invasão de grande escala para derrubar o Governo de Volodymyr Zelensky e ocupar toda a Ucrânia, alegando como objetivo a desnazificação do país. Ao longo dos últimos 12 meses, o conflito no leste da Europa teve várias fases, com avanços e recuos de ambos os lados, territórios conquistados pelas forças russas e, posteriormente, recuperados pelas tropas ucranianas, e milhares de vítimas em consequência.
Já em fevereiro deste ano, o presidente ucraniano conseguiu reforçar o apoio do Ocidente, com a promessa deste de enviar mais armamento e munições para os militares ucranianos, necessários para fazer frente à ofensiva russa. Paralelamente, esta decisão dos Estados Unidos e dos aliados de fornecer recursos militares, desde logo os tanques Leopard 2, foi interpretada pelo presidente da Rússia como uma interferência externa, o que levou Putin a advertir que tal posição pode elevar o conflito a “outro nível”.
Sem demonstrações de que o Kremlin queira pôr fim ao conflito e com o apoio assumido e reforçado do Ocidente à Ucrânia, os especialistas acreditam que a Rússia se prepara para intensificar a ofensiva. Ao fim de um ano de guerra, também poucos apostam na possibilidade de Putin aceitar, em breve, negociar um acordo de paz sem que antes garanta algumas vitórias.
Os cenários são muitos, mas considerando a evolução da situação desde fevereiro de 2022, é necessário analisar todas as possibilidades e perspetivas. Como Paulo de Almeida Sande admitiu, em entrevista à RTP, há um ano nem “acreditava de todo que fosse haver guerra”.
“Não acreditava que a Rússia invadisse a Ucrânia. Desde então, estou muito mais cauteloso”, afirmou o especialista em Relações Internacionais, nomeadamente em questões europeias.
Na mesma linha, Ana Santos Pinto considera que o fator que condiciona a análise da situação russo-ucraniana é o “fator surpresa”, principalmente “pela forma como o ano decorreu”.
“Face à desproporção das capacidades militares entre a Federação Russa e a Ucrânia, não era antecipável que o conflito durasse tanto tempo e com a intensidade que teve”, argumentou a especialista em Relações Internacionais e ex-secretária de Estado da Defesa.
“Chegado este momento, e no qual verificamos um apoio do ponto de vista militar muito significativo por parte dos aliados da Aliança Atlântica à Ucrânia, isso muda um bocadinho o que pode ser a capacidade de perspetivar o conflito”.
Cenário 1: Cessar-fogo. Kiev e Moscovo à mesa das negociações
Trezentos e sessenta e cinco dias depois do início da invasão que alguns achavam que nem ia acontecer, os peritos, políticos europeus e a comunidade internacional questionam-se sobre quanto tempo vai durar esta guerra e o que pode acontecer ao longo de 2023, com a evolução da situação e a interferência ocidental.
O primeiro cenário é o que, provavelmente, agradaria à maioria e, ainda assim, é o menos consensual: um cessar-fogo. Sentar os líderes ucranianos e russos à mesa de negociações, de forma a mediar o conflito e pôr termo à guerra, tem sido o objetivo primeiro do Ocidente e de alguns intervenientes externos. Até agora, sem sucesso.
Ana Santos Pinto não tem dúvidas de que, nos próximos meses, haverá uma “escalada do conflito” que poderá “significar um aumento do número de baixas em comparação com os últimos meses”. Na sua análise, contudo, aponta que “esta nova fase vai prolongar-se até ao fim de 2023”, ou início de 2024.
Segundo a antiga secretária de Estado da Defesa Nacional, nos próximos meses a ofensiva será “mais intensa e por picos”, mas pode terminar no fim deste ano.
“Vamos ter de perceber quem controla o território e quem tem capacidade para manter ou conquistar território, tanto no lado da Federação Russa como no lado da UcrâniaSó depois é que se “pode pensar num processo negocial”. Para isso, continuou, é necessário que tanto a Rússia como a Ucrânia se sintam “em condições para se sentar à mesa de negociações”. Condições essas que “implicam solidez do ponto de vista político” de cada uma das partes e ainda que territórios estarão incluídos no acordo.
“O centro deste conflito é colocar em causa a integridade territorial de um Estado soberano. E é isso que é o centro das negociações de paz, quando elas acontecerem”, recordou, acrescentando que tal só acontecerá “quando no terreno e ao nível do conflito militar existir um contexto que permita à Federação Russa e à Ucrânia sentarem-se para retirar qualquer coisa desse processo negocial”.
Apesar destas condicionantes, a professora de Estudos Políticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa acredita que “a componente negocial e diplomática acontecerá”.
“Provavelmente não no tempo que nós gostaríamos e que permitisse diminuir o que já são efeitos trágicos do conflito. E provavelmente isso só acontecerá no final de 2023 ou início de 2024”.Analisando os possíveis caminhos, também Bernardo Pires de Lima acredita que, em caso de derrota de Putin e de uma mudança interna na Rússia, se pode pensar “numa ida para a negociação, sob pressão maior da China, por exemplo”.
Já para a investigadora Sandra Fernandes, da Universide do Minho, o cenário de um cessar-fogo “ainda é muito dependente de uma clareza sobre a vitória no terreno”, embora seja o “mais desejável”.
“O cenário imediato é perguntar se é possível calar armas, se é possível chegar a uma situação de cessar-fogo”.
“Esse é um cenário que seria o mais desejável, porque só com cessar-fogo podemos pensar no futuro, que é o futuro da reconstrução, o futuro da integração da Ucrânia na União Europeia e o futuro de uma relação mais apaziguada com a Rússia - que não significa uma relação de cooperação, mas significa uma relação em que se consegue um convívio sem agressão entre os Estados europeus e o maior vizinho que nós temos, que é a Rússia”.
Mas um cessar-fogo, como explicou Sandra Fernandes, implica que ambas as partes “tivessem vontade para tal” e, neste momento, não há “ainda condições para que a diplomacia possa atuar, ou seja, para que as armas se calem, para que se possa conversar”. Por isso, neste momento não acredita que haja “condições” para negociações, até pelos cenários políticos mais recentes, com o apoio assumido à Ucrânia e as visitas institucionais dos líderes ocidentais. E do lado da Rússia, antes de qualquer acordo, resta a possibilidade de “ativar o aliado bielorrusso”, aumentando a “capacidade de pressão à Ucrânia” do ponto de vista militar.
Na mesma linha de ideias, Paulo de Almeida Sande apontou “cautelosamente” que um dos cenários possíveis é haver “verdadeiras negociações e um acordo qualquer”. Mas ainda assim com condicionantes.
“Qual é o problema de haver um acordo qualquer e negociações? É até que ponto cada um pode ir”, afirmou. “Quais são as linhas vermelhas reais – do lado da Ucrânia em termos sobretudo de território, e do lado da Rússia em termos sobretudo de salvar a face? Muito sinceramente não vejo que essas linhas vermelhas sejam próximas”.
Para haver negociações, Putin precisaria de “demasiado para os ucranianos aceitarem” e o que os ucranianos necessitam para negociar "é demasiado para Putin aceitar”, considera.
Mas o antigo consultor do presidente Marcelo Rebelo de Sousa não negou que considera “difícil” que haja negociações “face àquilo que cada um pretende”. Para além de ser preciso que ambas as partes estejam dispostas a negociar, o acordo tem de ser “supervisionado” e ser mediado pela comunidade internacional, porque “nas mãos das partes [envolvidas] já vimos, com o Tratado de Minsk, que não resultou”.Cenário 2: Derrota de uma das partes
A comunidade internacional condena, desde o primeiro dia, a invasão da Ucrânia e classifica a Rússia como o Estado “agressor”. Neste sentido, o apoio do Ocidente e da NATO a Kiev e à derrota das forças de Moscovo é assumido. Mas as possibilidades estão todas em aberto.
Sem o apoio dos Estados Unidos e dos aliados, os especialistas duvidam que a Ucrânia tenha capacidade para travar a ofensiva russa. E uma vitória da Rússia pode levantar muitas questões diplomáticas, geopolíticas e até do direito internacional, a nível global. Uma coisa é certa: em qualquer um destes cenários, as consequências e as mudanças futuras são imprevisíveis.
Para Bernardo Pires de Lima, um dos cenários “pode passar pela reconquista territorial progressiva pelas tropas ucranianas, graças ao apoio militar ocidental conforme solicitado por Kiev”.
“Isto significaria uma derrota de Putin e provavelmente abriria uma crise de regime profunda”, explicou o atual conselheiro político do presidente da República Portuguesa.
O problema é que “ninguém sabe antecipar os seus efeitos internos e externos”, ou se seria “uma mudança de poder para pior, para melhor ou uma via de transição”.
Uma outra hipótese seria o “controlo do Donbass pelas tropas russas, correspondendo às regiões que referendaram a independência”. A partir daqui e “garantida também a Crimeia desde 2014, põe-se a questão se Putin dá a guerra como satisfatória ou se quererá mais território, até à Transnistria, ou mais ao centro, ou mais a nordeste”.
Embora reconheça que nenhum dos lados possa, atualmente, “reclamar uma vitória clara”, Sandra Fernandes acredita que uma vitória da “parte dos ucranianos não significa necessariamente recuperar o território”. De acordo com a especialista, estamos numa fase de “movimento da guerra” em que as forças russas estão a retomar a ofensiva e a sair de um momento “de impasse”.
“Portanto, o cenário que se avizinha é: ora a Rússia consegue a sua contraofensiva e volta a ganhar território contra os ucraniano e continuamos numa fase muito dura e muito violenta da guerra que não nos permite pensar na fase seguinte do diálogo; ou então os ucranianos recebem o tipo de armamento e sobretudo de superioridade tecnológica que permita não só travar os avanços russos no território, mas também fazê-los recuar”.
Na perspetiva de Paulo de Almeida Sande, “haver uma derrota de um dos lados” é um dos possíveis cenários. Todavia, o perito acredita que é “muito difícil” que aconteça.
“É uma hipótese que me parece muito remota. Portanto, nenhum dos lados ganha”, disse, explicando que, por isso, considera mais provável o prolongamento do conflito.
Profundo conhecedor das instituições europeias, Almeida Sande acredita que o cenário mais provável é esta guerra “prolongar-se” e “tornar-se quase endémica”, como o conflito israelo-palestiniano, por exemplo.
“A verdade é que neste caso, corremos o sério risco de isso acontecer, de a certa altura haver uma espécie de impasse. Nem um nem outro ganha e não há negociações possíveis (…). Na minha opinião este é o pior dos cenários”.Há um ainda um outro cenário mais político, na visão do assumido europeísta e comentador na RTP, que implica o afastamento de um dos líderes dos dois países envolvidos no conflito.
Praticamente desde que Putin ordenou que as forças russas invadissem o território ucraniano que se considera, segundo algumas teorias, a possibilidade de a guerra no leste da Europa escalar para um conflito mundial. E é assumido pela NATO, pela ONU e pelos líderes ocidentais que há receios que seja despoletada uma Terceira Guerra Mundial. Ou pior, considerando as ameaças subtis do presidente da Rússia: uma guerra nuclear.
Analisando as perspetivas políticas, diplomáticas e militares, além dos avanços da guerra, nas últimas semanas, a escalada para um conflito mundial é um cenário indicado como possível. Mas nem todos os especialistas e analistas consideram provável que aconteça.
Bernardo Pires de Lima considera que “os piores cenários devem estar no quadro de avaliação de todos os decisores”, mas prefere não “levantar questões alarmistas por pura especulação”.
Já a investigadora Sandra Fernandes, doutorada em Ciência Política, acredita que é “algo que está sempre em plano de fundo, porque é uma questão de interpretação por parte do presidente Putin”.
O chefe de Estado da Rússia tem de estar “perante um dilema de segurança”, cuja “ameaça e agressor já não são só a Ucrânia”. Por isso, a também comentadora da RTP considera que é uma “questão de interpretação política por parte da liderança russa”.
No entanto, reconhece que “não temos tido sinais” de que seja isso que Vladimir Putin quer. Nenhuma das partes, segundo a análise de Sandra Fernandes, pretende que o conflito escale a esse nível. E mesmo do lado do Ocidente, apesar das decisões de enviar armamento à Ucrânia e de assumir o apoio da defesa do país face ao agressor russo, as posições são “ponderadas”.
“É também dado um sinal a Putin que estas entregas de armas não significam que [os líderes ocidentais] querem ir para a guerra. Portanto, é ponderado sempre”, afirmou ainda.
É uma possibilidade, admitiu, e “fica sempre em aberto”. Mas “há sempre incidentes que acontecem no terreno” e podem ser “um perigo latente, constante, que deve ser encarado como um dos cenários”.
“Os desafios são tantos e de outra natureza que isso não vai acontecer. O Ocidente não quer e a Rússia também não quer, porque não tem capacidade para uma guerra em duas ou três frentes”, argumentou, frisando que também a economia russa “está a sofrer muito”.
“O risco maior é o de haver outro tipo de escalada e essa escalada é preocupante”, apontou, referindo-se a uma potencial ameaça nuclear. Mas “nem Putin tem essa capacidade autónoma, não há um botão” em que se carrega e se destrói tudo.
“Não me parece que isso possa acontecer. Agora, é o risco que me parece maior do que uma guerra convencional. (…) Isso é algo que assusta, sobretudo porque Putin está sempre a falar nisso, de forma ambígua, mas usa muito essa ameaça”Por isso, o especialista em Relações Internacionais reconhece a necessidade de se fazer análises realistas e cautelosas e ter em conta que é uma ameaça e “pode acontecer”.
Ana Santos Pinto, por seu lado, não acredita que a “dinâmica política e militar” do Kremlin vise extravasar o conflito para fora do território ucraniano. Mesmo com o apoio dos Estados Unidos e da União Europeia, e com as reações de Putin a cada tomada de posição do Ocidente, a especialista em relações internacionais não considera que, para já, “este seja um elemento de discussão”.
No entanto, a possível adesão da Ucrânia à NATO e a posição que a Aliança Atlântica tomar futuramente pode mudar esse cenário, visto que é preciso perceber o que é que “esta adesão significa”.
“Estando a Ucrânia no conflito, talvez seja necessário ponderar vários fatores que, uma vez mais impedem o apoio continuado, permanente, dos aliados conforme tem acontecido até agora”, concluiu.Uma guerra entre vizinhos
No início deste mês de fevereiro, prestes a completar um ano desde o início do conflito na Ucrânia, o chefe dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas afirmou que quase 18 milhões de pessoas sofrem com as consequências desta guerra. Martin Griffiths advertiu, na altura, ao Conselho de Segurança da ONU que há ainda muito por fazer e que cerca de 40 por cento da população ucraniana precisa de ajuda humanitária.
Perante todos os possíveis cenários, é inegável que qualquer que seja a perspetiva de análise e o caminho que a Ucrânia e a Rússia seguirem, ao longo da evolução da guerra, as populações são as maiores vítimas. As perdas humanas são já incontáveis e os danos materiais incalculáveis nas cidades destruídas. Ainda não houve um cessar-fogo, nem se sabe se e quando acontecerá. Mas para lá dos cenários políticos, bélicos e económicos, há todo um lado social em profunda transformação desde 24 de fevereiro de 2022.
A antiga secretária de Estado, Ana Santos Pinto, não tem dúvida que este conflito terá “um impacto muitíssimo importante a médio e longo prazo” na população ucraniana. Fazendo um paralelismo com algumas guerras civis da História, a investigadora explicou que há sempre uma destruição de “uma parte significativa do tecido social”.
“Não é só entre famílias, entre amigos”, afirmou, referindo-se às famílias russas e ucranianas com membros divididos entre os dois países. “É entre vizinhos. A noção de convivência” muda e leva à “criação de uma diferença identitária, com marcas traumáticas, que não existia até agora”.
“Há gerações que vão ficar marcadas pelos eventos traumáticos desta guerra, desde as crianças aos jovens”, lamentou, especificando que para as crianças que tiveram de abandonar as suas casas fica “uma dimensão traumática muito significativa”.
Mas também do “ponto de vista identitário”, estas pessoas sofrem com o impacto do “sentimento de pertença à Ucrânia” e com a “diferenciação face à comunidade russófona e àqueles com proximidade significativa com a Federação Russa”. A partir de agora, ficam com uma “marca que os impede de conviver entre si nos mesmos termos” que existiam antes da guerra.
Isto é, para Ana Santos Pinto, um “elemento destruidor das características do tecido social”. Nesse sentido, o desafio para quando a guerra terminar é saber como se “reconstrói esta sociedade e este tecido social”, tentando “curar as feridas desta tragédia identitária”.
Também Bernardo Pires de Lima concorda com o facto de que a guerra na Ucrânia acentuou a fratura social entre os dois povos. O especialista crê que “ficou clara a identidade nacional, cultural e política da Ucrânia independente da Rússia, ao contrário de uma parte da argumentação de Putin para justificar a invasão há um ano”.
Nesse sentido, é claro que a “fratura entre os dois países acentuou-se e dificilmente terá uma inversão positiva nos próximos anos”. E de acordo com investigador, o mesmo “é válido para os países mais próximos do conflito e de outras latitudes da Europa, o que implicará uma descolagem estrutural dos europeus com Moscovo em vários planos”.
Há uma questão, contudo, que Sandra Fernandes frisa: a fratura social entre russos e ucranianos “não é de hoje”.
“A questão da Ucrânia e da anexação da Crimeia em 2014 é um assunto que já fraturou famílias”, recordou a comentadora da RTP em assuntos internacionais.
Desde 24 de fevereiro de 2022, “houve uma aceleração deste fenómeno que está a criar ou a recriar, à velocidade da luz, uma nova identidade ucraniana mas também russa”, com a vontade “de criar uma linha divisória” por uma questão de sobrevivência.
Em consequência da ofensiva russa, observa-se um “aprofundamento de um movimento que já antecede a guerra mas que agora é levado de forma muito radicalizada pelos dois lados”.